Mostrando postagens com marcador Nova Friburgo. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Nova Friburgo. Mostrar todas as postagens

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Não sei quem escreveu, mas é lindo!



"De um lado, o pesadelo.

Uma madrugada sem dormir, a falta de luz, o alto barulho da chuva vencendo um silêncio de tensão compartilhada.

Ta chovendo demais, ta chovendo demais.

Pela janela a luz de relâmpagos revela a rua alagada, enquanto o estrondo e o chacoalhar de um carro que tentava escapar revelam o enorme buraco escondido pela água escura.

O dia amanhece, os olhos ainda exploram os estragos visíveis, quando o som indescritível de uma avalanche anuncia algo de grandioso acontecendo. O coração dispara, o olhar se volta para a esquerda, e a consciência duvida do que os olhos estão vendo. Todo o morro esta descendo.

É muita, muita terra.

O entulho some da vista, escondido pelos prédios. Um forte estrondo é ouvido, surge uma gigantesca nuvem de poeira. Não era encosta, não havia falhas na topografia nem tampouco casas em local de risco. É mata nativa, reserva natural. Se ali está desabando, então todo o resto já terá caído.

O pensamento se volta para os amigos que ali residem. Nomes, rostos. Corremos para o telefone. Mudo. Ainda chove forte, mas é preciso ir lá ver. Há lama e destruição por todos os lados, pessoas choram e correm. Na rua anterior um verdadeiro rio impede a passagem, permitindo apenas ver um caminhão dos bombeiros esmagado por entulhos. “Seis bombeiros morreram” – alguém diz, aos prantos. Não era boato. Mais alguns minutos e a chuva para. Podemos chegar mais perto.

Corpos passam em macas o tempo todo, bombeiros perguntam se alguém tem
experiência em primeiros socorros ou reanimação. É difícil saber qual a melhor forma de ajudar. Amigos de infância estão debaixo de uma montanha de lama e escombros, onde antes havia belas casas tradicionais. Uma grávida é resgatada enquanto dá à luz um filho morto. Do outro lado da praça, a água cobre carros e pontes, invade o shopping. Pessoas buscam lugares elevados, cachorros nadam a seus lados. Há pânico e informações desencontradas por todos os cantos. “A igreja de Santo Antônio está destruída”, “o teleférico acabou”, “edifício tal está para cair”, “fulano de tal morreu”, “estrada tal está interditada”, “tal bairro não existe mais”.

Uma volta pela cidade começa a dar a dimensão da tragédia, enquanto a luz não volta e não é possível ver os jornais. A coisa foi grande, foi muito grande. Devem estar tentando falar com a gente, querendo notícias. O drama extrapola os limites da zona atingida. Não há como tranqüilizar amigos ou parentes. Voltamos para casa. A comida na geladeira ameaça estragar. É preciso fechar o registro de água, para que a lama e o esgoto não contaminem o que resta na cisterna. É preciso economizar. Há pessoas presas em elevadores, e a luz não
voltará em menos de dois dias. A subestação foi afetada, postes caíram, e há fios de alta tensão entre os escombros, onde também há vazamento de gás. O comércio está fechado, hospitais estão isolados e/ou destruídos, não há gasolina. Amigos se reencontram e cumprimentam em silêncio. Não cabe perguntar se está tudo bem, é preciso buscar novas formas de saudação.

O sol se põe, é preciso tentar dormir. Mas como? Bateria do celular começa a acabar, na eterna busca por sinal. Lanternas e velas se esgotam apesar do racionamento. O mundo fica cada vez mais escuro, somos todos cegos. A noite se arrasta no medo de que volte a chover. Um banho rápido e gelado no escuro talvez ajude a passar o tempo e a diminuir um pouco a sensação de angústia e tensão.

O sol torna a nascer. Parentes de vítimas não se afastam dos montes de escombros. Passaram a noite por lá. Não existem ônibus circulando, pessoas caminham dias inteiros. O dinheiro é curto, bancos e caixas eletrônicos não funcionam. Filas se formam nos poucos estabelecimentos que se atrevem a funcionar. A entrada de pessoas é controlada, pois há medo de saques. Os preços se multiplicam, uma única vela pode custar até dez reais. Revolta e tristeza invadem a alma: “há necessidade disso? Já não sofremos o bastante?”.

A presidente está na nossa rua, os helicópteros não param. “A coisa deve ter sido ainda maior do que parece” – pensamos. Ainda sem luz, não temos tanta noção. A cidade se enche de bombeiros, policiais, homens do BOPE, da Guarda Nacional. O Exército também está aqui, é muita gente trabalhando. Na praça ergue-se um hospital de campanha; no Instituto de Educação um IML é improvisado. Um médico pede um pouco de pomada descongestionante, pois o cheiro dos corpos já em decomposição começa a se tornar insuportável, e se espalha por toda a cidade.

Uma grande caixa d’água se rompe num bairro afastado. A notícia ganha proporções catastróficas no boca-a-boca de uma população apavorada. Interfone e telefone tocam ao mesmo tempo. “Corre que a represa rompeu, vai inundar a cidade inteira, a água vai chegar até o segundo andar”. Bombeiros apavorados sobem em caminhões, doentes são transportados para os andares superiores de hospitais improvisados, pessoas são pisoteadas e atropeladas, ou brigam ferozmente por uma vaga nos caminhões que abandonam o centro à toda velocidade. Não haveria volume d’água na maior represa da cidade que fosse suficiente para causar nem um milésimo do que era alertado, mas pouca gente consegue pensar calmamente quando até mesmo os militares estão em pânico. Alarme falso, terror real.

De outro lado, a esperança.

Caminhões com donativos começam a chegar um após o outro, enquanto pessoas surgem de todas as cidades dispostas a ajudar. Os telefones começam a tocar timidamente, ainda é difícil conseguir contato. Do outro lado da linha vozes amigas choram de alívio a cada alô. Boas notícias surgem, de vez em quando. Existem sobreviventes, algumas pessoas são resgatadas com vida. Em Friburgo, no bairro de Duas Pedras, o morador da casa mais alta, próxima à Fundação Getúlio Vargas, sente a estrutura de sua casa balançar e sai de imediato. Desce a rua no escuro e debaixo de chuva dando o alarme do desabamento iminente aos seus vizinhos. O morro desaba, mas nenhuma vida se perde ali. Herói da vida real, prefere o anonimato.

O trabalho no voluntariado consola e renova. A sensação inigualável de servir e ser útil, a admiração por ver pessoas de fora trabalhando tanto ou mais que nós, os interessados. Descarregar um caminhão dá muito mais trabalho do que parece, descobrimos isso rapidamente. E imaginar que, em algum lugar do Brasil, este mesmo trabalho estafante foi feito com alegria por pessoas que nem sequer nos conhecem...

A ajuda material é, a um só tempo, útil e simbólica, pois carrega em si uma mensagem invisível. Sacia as necessidades do corpo, cura as doenças da alma. Uma garrafa d'água não é só uma garrafa d'água. É uma declaração de amor e de apoio, de alguém que saiu de casa e foi comprar, levou para o posto de coleta, onde pessoas com amor carregaram o caminhão. É, portanto, material sagrado. É sacrifício do povo, é atitude, é gente comendo menos para que outros possam comer alguma coisa. É carinho materializado.

Nos hemocentros, filas se formam com doadores. Doadores de sangue, doadores de vida. Gente que literalmente deseja dar parte de si mesmo ao próximo. Impossível se manter o mesmo diante de tantas forças, sejam elas tristes ou bonitas. De certo modo, é justo dizer que todos nós morremos debaixo do lamaçal. Não somos mais os mesmos, nem temos o direito de ser.

A consciência sobre as bênçãos e responsabilidades de simplesmente estar vivo se amplia indefinidamente. Continuamos aqui, por algum motivo. Estamos sendo abraçados, protegidos. É preciso justificar isso, é preciso trabalhar, honrar os que se foram, e os que estão ajudando. A vida nos deu uma página em branco. É preciso reconstruir, e fazer uma cidade melhor e mais segura do que antes. É preciso renascer, tornar-se uma pessoa melhor e menos alienada, abandonar o superficial e voltar os olhos ao essencial. É preciso ajudar a quem precisa, dividir o que se tem. Há que brotar vida verdadeira desta mesma lama, adubada por tantos amigos inesquecíveis que por lá pereceram.

A luz voltou, e os jornais falam em tragédia anunciada. Meia verdade. Em Petrópolis e Teresópolis choveram 130 mm. Em Friburgo foram 182. Em algumas cidades a tragédia de fato se concentrou em bairros periféricos e casas em locais de maior risco. Em Friburgo, reservas naturais e mansões desabaram da mesma forma. Casas de classe média alta, a 200 metros de encostas, foram soterradas. Não houve distinção. Falar em drenagem ou muros de contenção diante de tamanha potência é fazer piada de mau gosto. Útil, sim, seria um plano diretor livre de demagogias, e um sistema de alarme eficiente, como o herói anônimo de Duas Pedras.

Chega o domingo, e com ele os primeiros raios de sol. Faz um dia bonito, apesar da poeira, e quando começa a anoitecer o céu assume uma coloração azul deslumbrante. Uma leve brisa sopra pelas ruas desertas, e, por um instante, as sirenes dão uma trégua. Fecho os olhos por alguns segundos. Torno a abri-los. Perco o olhar nas estrelas e me deixo levar. Em minha cabeça ouço nitidamente a voz vigorosa de Renato Russo cantando.

“Mas é claro que o sol vai voltar amanhã...” "
Minha homenagem e respeito a todos as pessoas, árvores e animais que tombaram e sofreram com as chuvas na Região Serrana do Rio de Janeiro em janeiro de 2011.

domingo, 16 de janeiro de 2011

A verdade das enchentes

Era 11 de janeiro de 1966, exatamente 45 anos antes da noite de início da tragédia na serra fluminense. Morava com minha família em uma casa no Cosme Velho construída por meu pai, engenheiro calculista. Para quem não conhece, é o bairro onde está a estação do bondinho de acesso ao Cristo Redentor, um vale entre belas encostas do Rio.

Acordamos, de madrugada, com uma chuva apavorante. Na véspera, já fôramos surpreendidos pela descida de parte da encosta atingindo os fundos da casa. Nada sério, mas na noite seguinte foi diferente, foi o dia em que o Rio enfrentou uma das grandes tragédias causadas por chuvas de verão. Morreram 140 pessoas. Um edifício inteiro caiu no bairro de Santa Tereza, matando grande parte dos moradores.

Naquela noite, terra e lama invadiram até o teto do primeiro andar da nossa casa, cobrindo e destruindo móveis e objetos na sala de estar, cozinha e varanda. No momento do desmoronamento, por sorte, os quatro filhos, estavam todos no quarto dos pais e ninguém foi atingido.

Passado o pânico com o barulho estonteante de montanhas de terra caindo e quebra dos vidros das janelas, vizinhos, solidários, vieram nos socorrer levando a família para suas casas, rua acima. Tudo debaixo de chuva torrencial.

O remanejamento da população é caro, mas deve ser feito.

Passado o susto, meu pai tratou de estudar geotécnica. Projetou um sistema de proteção na encosta no morro atrás da casa, cujo topo vinha silenciosamente sendo ocupado por moradias irregulares.

A terra jamais voltou a invadir a casa. Mas, por muitos anos, a cada verão, mesmo depois dos filhos terem seguido rumo próprio, bastava uma chuva forte para todos, tentando mostrar calma, telefonarem para saber se estava tudo bem por lá.

O Rio de Janeiro vive históricas e seculares enchentes. O jornal “Extra” mostrou, ontem, que apenas entre 2001 e 2010, todos os anos morreram pessoas vítimas de enchentes, totalizando 554 óbitos. Este ano, já houve 444 mortos identificados na região serrana fluminense.

Certamente muitas análises e mapeamentos já foram feitos, e a cidade reduziu as consequências protegendo encostas, deslocando moradores em áreas de risco.

Mas o que se sabe é que há planos que ficam nas prateleiras. Em Teresópolis, por exemplo, a defesa civil, na gestão passada, produziu um relatório detalhado e um chamado Plano Municipal de Redução de Riscos. Na atual, o plano foi refeito. A proposta era localizar todas as áreas de risco invadidas e tirar a população. Mas segundo uma fonte que acompanhou o processo, praticamente nada foi realizado.

A doutora em geografia do meio-ambiente Ana Luiza Coelho Netto, do Instituto de Geociências, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), defende uma ação ampla. Diz que o momento é um alerta para ser repensado o modelo de planejamento da ocupação de toda a região Sudeste, principalmente as áreas mais montanhosas. Ela lembra que nelas há deslizamentos, independentemente da presença humana. O problema é que hoje as terras são ocupadas desordenadamente, seja pela agricultura ou por habitações dos de baixa renda ou não, causando importantes perdas, e com isso acabam se configurando grandes catástrofes.

“Atrás das cicatrizes dos deslizamentos ficam clareiras nas encostas, perdendo-se elementos que dariam resistência ao solo. Com planejamento adequado, as chuvas de grande magnitude não impediriam o deslizamento, mas não atingiriam a dimensão das perdas que estamos assistindo”, afirma.

O também professor e economista da mesma UFRJ, Mauro Osório, estudioso do Estado, lembra que há décadas se sabe que a cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, conta com áreas abaixo do nível do mar. Uma delas é a Praça da Bandeira, perto do estádio do Maracanã, onde há um rio com o mesmo nome, parte dele canalizado, e as enchentes se repetem ano a ano.

Ele reconhece que foram realizadas muitas obras de contenção de encostas na cidade e que, ainda na década de 60, foi criado um instituto equivalente a atual GeoRio. Como muitos municípios não têm condições de arcar com os custos dos estudos de ocupação e processos de recuperação de encostas, sugere na linha da professora Ana Luiza a realização de um planejamento amplo, a adoção de um modelo de consórcios unindo prefeituras e o governo do Estado para a região serrana, em especial, contar com um trabalho permanente de proteção das encostas.

Osório lembra que o Estado do Rio de Janeiro sofreu com uma “lógica de políticos clientelistas” que não trabalharam com planejamento, facilitando invasão moradia em lugar precário causada, em boa parte, pela ausência de alternativa.

Sergio Besserman, ambientalista, membro do conselho diretor da WWF-Brasil que trabalha no tema mudanças climáticas desde 1992, avalia que não há solução de curto prazo e destaca que o diagnóstico é de três agendas.

Uma delas é a “do passado”, a da ocupação irregular, sem planejamento. “Ninguém fez nada na área de habitação e as pessoas tem que morar. Saíram procurando lugares mais baratos e vulneráveis. Mas, obviamente, não é possível realocar todas as pessoas da noite para o dia, é preciso tempo. No Rio, há 18 mil casas em locais de risco. Custa caro o remanejamento, mas os governos vão ter que lidar com isso”. Essa é a agenda do presente.

Ele destaca, contudo, que há “a agenda do futuro e as notícias não são boas”. Ele avalia que neste verão choveu como há 40 anos atrás e “não pode se afirmar que foi o aquecimento global, mas o certo é prever que vai voltar a chover assim e não vai mais demorar 40 anos para acontecer. As chuvas serão com mais frequência e intensidade”, alerta.

*Heloisa Magalhães é chefe de Redação no Rio de Janeiro

Em: http://mariafro.com.br/wordpress/?p=22849